Salvador, 23 de outubro de 2009.

Meus pais me deram o nome de Marta Neri da Silva, nasci em 1965 na cidade de Salvador. Numa casa rodeada de mulheres, irmãs da minha mãe e minha avó, que morava conosco, cresci em meio a tecidos, carretéis de linhas, alfinetes e agulhas que nos espetavam perdidos sobre camas e sofás de nossa casa. Entre cortes e costuras tornei-me o que inegavelmente poderia deixar de ser, uma costureira.

Há algumas semanas enquanto modelava uma peça encomendada por uma cliente; na pilha de jornais que utilizo para recorte dos moldes das roupas que costuro, escrita na página onde recortei a manga da blusa que fazia, li a seguinte frase: “Cuide de Você”.O corpo da nota estava cortado, entretanto, ainda consegui ler: (...) “ escrito por Alejandra Muñoz e Museu de Arte Moderna da Bahia”. Eu poderia achar que este titulo seria mais uma propaganda de remédios com efeitos milagrosos, ou receitas para emagrecimento, contudo aquela pequena frase soou-me diferente, aguçando minha curiosidade, decidi que iria até aquele lugar.

Ontem abandonei por algum momento o trabalho que tira horas e horas do meu dia e fui até o MAM. Descobri que aquela intrigante história era mais emocionante do que imaginava.

Assim que entrei na sala do museu recebi a carta, sentei e á li. Aquela exposição era diferente, pelo menos para o pouco que conheço de arte, sem mencionar a vergonha que sinto ao pensar que nunca havia entrado num museu. Presenciei ali, a vida de uma mulher que transformou uma perda em obra de arte. Não há como não se colocar no lugar de Sophie Calle.

A maneira fria e calculista como aquela carta soou aos meus ouvidos, foi como uma espetada de agulha no dedo durante uma costura, e quando X diz que há algum tempo vem querendo responder o e-mail que lhe restava a dúvida do pessoalmente ou por escrito, imagino que na verdade ele não tinha coragem de dizer o que realmente pensava e encontrou no e-mail uma forma prática de não precisar olhá-la nos olhos, me fez pensar na reação que teria, caso fosse a mim remetida.

Seria como fazer um corte errado num tecido de seda e não houvesse jeito de concertá-lo, como descosturar uma colcha de retalhos, desfazer um lindo vestido com tesoura cega mastigando o pano, sem se importar com sua história, seu valor. Cada ponto é importante, a perfeição está nos detalhes, no acabamento. Acredito que a preocupação maior dele era com ele mesmo, do pesar no que lhe faria falta.

Jamais teria coragem de fazer algo como Calle fez, trazer algo tão íntimo, uma carta de rompimento e abandono, reagindo com audácia de revelá-la e distribuí-la a centenas de mulheres e receber delas as mais variadas respostas. Mas ouvir a resposta de sua mãe Monique Sindler, foi como estivesse ouvindo a minha própria mãe, acolhe sem deixar de dizer suas verdades, é perceptível quando Sindler diz: “Compartilho do seu desapontamento com tudo isso, mas não precisa fazer muito drama”.

Caminhei, observei a cada detalhe, havia textos, vídeos, fotografias muita coisa, estava impressionada com aquilo tudo, afinal era a minha primeira vez em um ambiente tão diferente dos quais eu estava acostumada a freqüentar, e ainda mais estranho, perceber até onde uma carta foi levada, afinal ali estava a experiência tão comum e corriqueira de ser traído e um sentimento tão universal, quanto o Amor.

Fiquei pensando, todas essas coisas, todas aquelas mulheres, de como a artista conseguiu juntá-las numa grande colcha de retalhos de sua vida, da fazenda de sua história, costurando opiniões diversas, explicações múltiplas, interpretações honestas. Um alinhavo perfeito para a costura de uma resposta, que não bastou apenas ser respondida, mas sentida e percebida pela essência feminina, ainda que Calle não seja uma costureira, prendada no oficio ao qual dediquei toda minha vida.

Ela encontrou as mais diferentes formas de ouvir as resposta, achei tão engraçado ao mesmo tempo irônico, ver uma cacatua, a Brenda comendo a carta como um animal usando seus instintos respondendo literalmente a vontade que algumas delas teriam de comê-la ou a de fazê-lo comer aquele papel. Numa comunicação simples e direta, quase como uma criança descreveria, como fez a pequena estudante Ambre com frases curtas, diretas e verdadeiras bem observadas pelo olhar infantil. Ouve até quem escrevesse música, apesar de meu conhecimento em música ser muito pouco o de ouvinte puramente, a musicista C. Chassol cria uma escala de tons que vão do mais grave ao mais agudo no pentagrama, levando sua canção aos pontos tonais mais extremos.

Vivi sempre muito só, sem falar das minhas clientes que freqüentam meu ateliê, quando termina o dia de trabalho minha casa está vazia, somos só eu e Katarina minha gata siamesa. Quando decidi escrevê-la não entendia muito por qual motivo fazia isto, fiquei maravilhada e muito surpresa diante da atitude criativa e bem pensada de Sophie Calle da maneira como tirou o melhor da situação ruim que vivia. Diferentemente dela não tenho uma grande historia, não tive um grande amor ou vivi uma desilusão, nem tomei grandes decisões para lhe escrever, tive uma vida tão linear como os pontos dados por minha máquina de costura. Num certo momento cheguei a ter uma “inveja” do sentimento de Calle da motivação de enviar sua historia a tantas pessoas no mundo ainda que não fizesse idéia de quem elas fossem. Quis assim como ela ver a minha historia conhecida por alguém, mesmo que não seja entregue a centenas de pessoas, mas, contada a você.

Cuidando de mim.

Marta Neri da Silva.



No dia 22 de Setembro de 2009 foi aberta a exposição 'Cuide de Você'

da artista francesa Sophie Calle. Uma exposição fora do comum ao

extremo desde sua temática a sua concepção,

inspirada por um email enviado a artista, onde seu namorado lhe comunicava o fim do relacionamento.

Deste email nasce 'Cuide de Você', última frase do infame rompimento,

o qual distribui a cento e sete mulheres no mundo,

das mais diversas profissões e as pede respostas baseadas

em seu ofícios.

A carta escrita acima é resposta a uma proposta

durante aulas de História da Arte Contemporânea na Escola de Belas Artes,

ministrada pela professora Alejandra Muños.

O pedido da proposta era somente responder a um "questionário", relacionado com a exposição.

No entanto, Calle trouxe a nós o desafio de ir além de respostas enumeradas,

darmos uma resposta a altura de tamanha ousadia e força.

Marta Neri da Silva é um personagem que criamos, fictício

que vivência a experiência de interagir com a exposição

'Cuide de Você'.


Rebeca Silva

Natalia Cavalcante

Jamar de Oliveira